O HOMEM DO PAU BRASIL NA CIDADE DELE

ALEXANDRE EULALIO
Universidade Estadual de Campinas, Campinas.

Atrás da mesa de Joaquim Pedro de Andrade, no escritório da produção que a Lynxfilm instalou na rua Rui Barbosa paulistana, coração mesmo do Bexiga, um esboço de cartaz, que ainda é menos do que um projeto, reproduz, enormes, isolados do resto do rosto dele, os olhos luminosos de Oswald de Andrade - uns olhos que riem um riso indefinível e onde navegam, inseparáveis, malícia e ternura sarcástica. Oswald de Andrade - Oswáld, por favor, vamos acabar com essa bobagem de Ôswald - é O Homem do Pau Brasil, tema do novo filme do diretor de Guerra Conjugal, Os Inconfidentes e Macunaíma, que estará sendo rodado em São Paulo e arredores até a primeira quinzena de agosto. Trata-se de uma versão libérrima da vida de Oswald, recuperada com agilidade através do cine-olho implícito nas narrativas mais ou menos autobiográficas do próprio. O roteiro tratou de recriar - com a vivacidade, a sutileza e o rigor dos filmes anteriores de Joaquim Pedro - o itinerário surpreendente do filho gordinho e bem-educado de Dona Inês, o nosso conhecido Serafim Miramar. De modo sintético, com fidelidade mais ao espírito que à letra, nele se reconstrói o mundo em que viveu e a utopia que sonhou, entre duas guerras mundiais, esse hipotético João Ponte Grande, o qual, determinado pela circunstância paulista dele, vive perigosamente a desintegração do patriarcalismo oitocentista ao ritmo agitado e instável da contação do café, que ora permite, ora limita as fantasias do filho-família que ele foi.

Com um caprichado sarcasmo que é muito dele, Joaquim Pedro consegue captar a imagem dessa curiosa personagem, brasileiro até a ponta das unhas, desde o veleitarismo dos verdes anos até o encontro com a consciência política da maturidade e a marcha para a utopia que ele ainda empreendeu depois. Para conseguir isto, percorreu, de lápis em punho, meses seguidos, os múltiplos cadernos em prosa e verso desse Aluno de Poesia sempre disponível, aí desentranhando a linha de coerência profunda que atravessa os escritos de um inventor desigual mas sempre apaixonado. Jornalismo, ficção, poesia, teatro, polêmica, ensaio, correspondência - tudo que Oswald escreveu foi percorrido pelo cineasta, que ainda entrevistou contemporâneos e estudiosos da obra. O resultado desse esforço criativo foi uma narrativa cinematográfica vertiginosa, fascinante, que não abdica da complexidade e do humorismo, e onde os elementos da vida real fundem-se com a invenção do ficcionista, procurando uma coerência que se situa muito além da literalidade biográfica.

No afã de obter um Oswald íntegro, Joaquim Pedro acabou por reconstruir em O Homem do Pau Brasil - o título do filme sai de uma resenha assim intitulada que o jovem Carlos Drummond de Andrade publicou em dezembro de 1925 em A Noite do Rio de Janeiro - uma personagem atemporal, embora mergulhada até o pescoço na época em que viveu. Personagem que, do ponto de vista dramático, não envelhece e se mantém fisicamente idêntico durante todo o espaço do filme. Personagem que, de tão pejada de significados, acabou por se cindir espontaneamente em duas imagens paralelas e complementares, ainda que jamais independentes, personagens interpretadas respectivamente por Ítala Nandi e Flávio Galvão. Embora divididos numa dupla inseparável (um leitor de Jung seria tentado a identificar como o animus e a anima de um mesmo Eu), não prevalece divisão de funções masculinas e femininas nesse Oswald plural. A insólita solução dramática foi amadurecendo aos poucos na cabeça do diretor, que não a havia considerado a princípio, e, até a fase final do roteiro, pensou que o protagonista dele deveria ser interpretado, como os demais figurantes do filme, por um único e determinado ator, Chegara até mesmo pensar em Othon Bastos para o papel; este apenas não pôde aceitar o convite por motivo de compromissos anteriores assumidos. (Bastos acabaria por fazer uma ponta: o capitão do Rompe-Nuve, o transatlântico muito louco que trafega entre Oropa França e Bahia durante todo o decorrer do enredo). Mais adiante, prosseguindo esse processo cifrado de descoberta das próprias intenções, começou parecer a Joaquim que a solução correta para o caso consistiria na figura de Oswald interpretada por uma mulher. Teria lugar assim uma alusão decisiva (a princípio subterrânea mas por fim explícita) ao matriarcado que o escritor de João Miramar visualizou corno último destino da Humanidade - o matriarcado antropófago, estado ideal de Natureza, que, ao fim dos tempos históricos, virá permitir a liberação do sentimento órfico esmagado em nós por uma História sempre carrasca. Certamente foi a interpretação de Ítala Nandi como Heloísa de Lesbos, na edição José Celso d'O Rei da Vela oswaldiano, em 1968 - inesquecível a entrada de ítala envergando terno de linho branco completo e chapéu chile -, que terá levado Joaquim Pedro à escolha da atriz. Mas logo na cabeça do diretor teve lugar, mais radical ainda, a explosão desse arquétipo andrógino em duas figuras separadas; significando de modo ainda mais veemente a múltipla complexidade do protagonista. E a Ítala Nandi, primeiro Oswald, juntou-se como parceiro Flávio Galvão, um novo e inesperado Oswald II. Um e outro de todo distantes de qualquer semelhança física com a personagem histórica, mas por isso mesmo a partir dos textos perfeitamente aptos para criar, em clave super-realista, a presença do humaníssimo anti-herói que iriam encarnar meio-a-meio.

Colhendo os seus episódios decisivos, principalmente em duas obras de Oswald - Sob as Ordens de Mamãe e Serafim Ponte Grande - o roteiro de O Homem do Pau Brasil seleciona algumas das passagens narradas naqueles volumes, retomando-as e interpretando-as à própria maneira. Assim a estada de Isadora Duncan em São Paulo, no ano da graça de 1916, uma das páginas mais poderosas do volume de reminiscências oswaldiano, serve de brilhante abertura para o filme. O(s) protagonistas) encontra(m)-se loucamente apaixonado(s) pela bailarina-menina-prodígio Dorotéia - interpretada por Cristina Aché, mulher do diretor, que compõe em sutil filigrana a figura entre perversa e ingênua dessa Lolita anos'10 e não percebe(m) o alcance do aceno que a celebridade internacional sabidamente disponível do ponto de vista romântico quando em trânsito faz ao(s) jovem(s) representante(s) da imprensa paulistana. Os momentos de alta comédia em que os dois Oswalds contracenam com lsadora nos camarins do Municipal e nos aposentos da grande bailarina no hotel eram cenicamente muito rentáveis. Por isso Joaquim Pedro havia pensado reservar para o papel da "Diva" uma comediante de bela figura, porte de ginasta e amplas possibilidades histriônicas: Tônia Carrero. Tônia contudo leu o roteiro e, segundo as próprias palavras, achou-o "fraco". Aliás contracenar também, em seqüência de conotação "sexy", com uma outra atriz, pareceu incongruente, deselegante e incômodo à mundana Stella Simpson de Água Viva. O diretor decidiu-se então tomar outro partido: convidar para o papel isadorável, em grande estilo, uma bailarina de verdade, pouco importando tivesse ou não a mesma experiência dramática. Neste momento, em São Paulo, um nome se impunha naturalmente: Juliana Carneiro da Cunha, antiga aluna de Béjart e fundadora do grupo Mudra em Bruxelas, e que entre nós já havia dado o ar da sua graça e da sua poderosa presença hierática em mais de um espetáculo de vanguarda. Uma escolha feliz que rendeu nova vibração à personagem.

Ao contrário de Regina Duarte, que com espírito inventiva e muito profissional aceitou o papel essencialmente antiglamouroso e pouco simpático de Lalá, a esposa que 'os Oswalds' já não podem mais tolerar, papel em que pôde dar prova da própria versatilidade de atriz madura, Paulo Autran, convidado para a parte ao mesmo tempo dramática e farcesca do pai do herói, recusou-a, afirmando não lhe interessar fazer parte de um filme onde o primeiro dos sentimentos, o amor, não era respeitado, Substituiu-o com convicção um veterano detrás das câmaras que, agora, diante delas, revelou dotes insuspeitados e vocação inequívoca de ator tragicômico: Mário Carneiro, pintor e fotógrafo de primeira água, além de diretor de um longa-metragem que nasceu clássico, Gordos e Magros.

Como a vida do Oswald de Andrade histórico está decisivamente ligada à chamada "revolução modernista", o Movimento de 22, com seus participantes e oponentes, não poderia ser esquecido na fita da sua vida, mesmo se evocado perfunctoriamente, como acontece em O Homem do Pau Brasil - onde o festival de fevereiro de 1922 é reconstituído no cenário mesmo que o abrigou: o Teatro Municipal. Mário de Andrade (interpretado com inegável sutileza e simpatia mimética por Paulo Hesse), Menotti del Picchia (Carlos Gregório, um dos atores da preferência de Joaquim Pedro), Anita Malfatti (removida da timidez e do encasulamento que eram seus pela beleza vistosa e pela irresistível sofisticação de Carmo Sodré) comparecem em cena e discutem as premissas da renovação estética nacional. Outros elementos ligados aos jovens escritores da vanguarda local também dão o ar da graça no filme. É preciso fazer referência à elegante composição da figura de Paulo Prado devida a Luís Linhares, a presença do poeta franco-suíço Blaise Cendrars, defendida com valentia por Marcos Fayad, e a personalidade estuante de simpatia e graça com que Etty Frazer compõe a grande anfitriã dos modernistas de São Paulo, Dona Olívia, que os despeitados insistem em chamar Dona Azeitona. Branca Clara, a musa artística dos Oswalds é interpretada com bela presença e muito espírito, charme e malícia por Dina Sfat; inspirada na figura emocionante de Tarslia, mas vivida segundo a modulação sarcástica de Serafim Ponte Grande, Dina recria essa personagem com absoluta convicção e "vis comica" apropriada. O último amor dos Oswalds no filme é Rosa Lituana, transposição ficcional da revolucionária Pagu; um papel interpretado com emoção por Dora Pellegrino nas seqüências em que se afirma a dimensão social e política do filme. Este, depois de inúmeras peripécias, conclui-se (como no Serafim) pelo seqüestro do Rompe-Nuve. Com o carregamento apropriado, o luxuoso vapor dirige-se para o alto-mar do futuro e da utopia, cenário da "apoteose dialética" (como a chamou o diretor). A bordo hão de se reencontrar, singrando para o destino comum, todas as personagens centrais do filme.

Neste resumo bastante capenga d'O Homem do Pau Brasil não podem ser esquecidas a participação de artistas notórios em pequenas aparições, todas elas mercantes, que enriquecem o filme como personagens de um friso: Grande Otelo, como o príncipe africano Tovalu; Paulo José, mensageiro de bordo; Nelson Dantas e Wilson Grey, missionários rumando para o Brasil; Marcos Pionka, presidente do estado; Lucélia Machiaveili, a megera; Guará Rodrigues, Biriba; Sérgio Mamberti, o fazendeiro de Morro Azul, e inúmeros outros ainda. A vigorosa ironia que deles se desprende contribui de modo decisivo para o significado final procurado pelo diretor, enriquecendo, com novas chamadas, o espírito de análise crítica que se procura despertar no espectador.

A cidade de São Paulo possui na obra de Oswald de Andrade uma presença constante e palpável. Esbatida numa meia névoa ainda simbolista em Os Condenados, entremostra-se na acelerada série de refrações cubo-futuristas que constituem as Memórias Sentimentais de João Miramar, deixa-se perceber na série dos grafitos agressivos recolhidos em Serafim Ponte Grande, até surgir afinal, representada de maneira voluntariamente figurativa, muito próxima ao espírito dos óleos proletários do Grupo Santa Helena, nos dois volumes de Marco Zero que o autor chegou a concluir. Num filme a ele dedicado, não poderiam faltar os sinais palpáveis da cidade em que ele nasceu, viveu e morreu. Todos nós sabemos, no entanto, ser atualmente quase impossível captar, principalmente num filme de época, o muito pouco que foi poupado da atmosfera sedutora desse passado recente. Reduzido à necessidade de ser na sua maior parte em interiores preservados quase por milagre ou ardilosamente reconstituídos pelos seus cenógrafos, os ambientes externos e internos de O Homem do Pau Brasil tiveram de ser completados com toques ora realistas, ora discretamente fantásticos, a fim de firmar a sensação de realidade literal (ou alusiva) que se desejava obter. A Hélio Eichbauer, cenógrafo por temperamento, artista dotado para um decorativismo monumental, abstrato, de amplo sopro, couberam os ambientes internacionais de teor vanguardista - os interiores de transatlântico, o ateliê parisiense de Branca Clara, o pavilhão "futurista" de Dona Azeitona. A Adão Pinheiro, pintor e ceramista, mais voltado para o pormenor do signo e a expressividade do ideograma, couberam os ambientes que procuravam reproduzir o cotidiano brasileiro e as atmosferas pouco a pouco fixadas pelo tempo - a casa praiana do pai de Oswald, os ambientes 1920 do Automóvel Clube, a livraria do Sena, o salão de Coelho Neto, a Fazenda Morro Azul, as vilas operárias do Brás. Inventivas e ágeis, os figurinos de Diana Eichbauer, recriados com relativa liberdade e sem uma intenção filológica precisa (que seria extrapolante neste caso), contribuem de modo decisivo para fixar os ambientes. Os poucos exteriores que foi possível aproveitar - estações ferroviárias, praças desertas, o Caminho do Mar, encostas da represa de Guarapiranga, praias de Bertioga - procuram compensar, com melancolia confessa, essa perda inevitável do perfil da cidade. No entanto, a densidade dos episódios cômicos e dramáticos que se sucedem num ritmo ininterrupto no sábio roteiro de Joaquim Pedro acaba por anular a ausência do cenário irremediavelmente destruído.

Assim, em breve, na noite paulistana, o olhar espevitado e irônico de Oswald vai poder somar, outra vez, à "maravilha de milhares de brilhos vidrilhos" de que falava um outro Andrade - o grande Mário -, a cintilarão de tudo aquilo que ele viu. E que nós veremos também por obra e graça de O Homem do Pau Brasil.

  Livro Involuntário

 OSWALD DE ANDRADE REMATE DE MALES Nº 6 

  ALEXANDRE EULALIO DILETANTE